“Quando a indústria da arte se tornou a indústria do artista”, 2061, entrevista, página 9.
Pergunta: Ao pensarmos na era cooperativa que vivemos, podemos ver como a percepção de valor mudou radicalmente. Para além dos drásticos acontecimentos políticos que ocorreram nos últimos 30 anos, a arte e a cultura também tiveram um papel significativo nesse processo de mudança. Nesse sentido, já foi dito que a maior contribuição do “movimento de infraestrutura contracultural” não foram as infra-estruturas equitativas em si, e sim, em um nível mais abstrato, uma equiparação daquilo que as pessoas entendem como “cool” com aquilo que é “justo”. Você concorda ?
Resposta: Então, primeiramente, não somos muito fãs desse título de “infra-estrutura contracultural” e, na real, torcemos para que suma logo. Mas sim, acho que o nosso movimento trouxe algum tipo de mudança. Se paramos para lembrar, naquela época, nós estávamos super derrotados e já acostumados a não ter nenhum tipo de opção fora do capitalismo. Meio que o que tinha era votar e ter que esperar que algum tipo de governança política planetária resolvesse o problema da desigualdade e também garantisse que a vida humana na terra continuasse a ser possível.
Acho que não lembro de algo pior do que ficar preso neste lugar e assim, embora nos considerássemos uma comunidade de artistas independentes que produziam trabalhos (sonoro, visual, performático ou o que for) que teoricamente pudessem trazer ou representar algum tipo de alternativa possível à toda essa situação, ou pelo menos um feeling disso, na real, percebemos que não, tipo…se é que algum dia isso tenha sido possível.
Era super comum que mesmo os objetos e experiências artísticas mais poéticas ou subversivas (e nós que as criamos) estavam associados ou eram financeiramente dependentes —direta ou indiretamente, de modo voluntário ou meio que sem ter outra opção— com algum tipo de conglomerado bilionário de roupa, mídia ou bebida, big tech, hedge funds, instituições com financiamento super suspeito, todo tipo de colecionador corrupto e modos de trabalho e produção constantemente atravessados por publicidade e financeirização.
Nos sentíamos super encurralados nessa condição e decidimos que ao invés de só fazer arte que criticasse essa situação, nós íamos tentar criar nossos próprios patrocinadores, patronos e instituições. Então pensamos “E se a gente capturar um pouco do lucro das contingências econômicas que criamos?”. Tava na cara que muitos bens de consumo se tornavam atraentes, mesmo no mainstream, justamente por sua relação com alguma subcultura artística. Muita gente queria gastar dinheiro nos produtos que nós – artistas da música, do teatro, das artes plásticas, do design, da escrita– estávamos vestindo, bebendo e até mesmo fumando, e muitas empresas viam nisso uma oportunidade de negócio e lucro.
Então meio que entendemos que nós mesmos podíamos sequestrar essa oportunidade, para mobilizar os nossos interesses, saca? Foi aí que nos dividimos. Metade de nós, do nosso interesse, do nosso tempo, do nosso trabalho continuou voltado para fazer a música, as artes visuais e as atitudes que moldavam uma determinada cultura; e a outra metade foi para a aprender como montar e tocar as organizações que nos fariam donos dos produtos que materializaram a mesma cultura. A gente brincava que ao invés da nossa arte ser transformada em negócios, a gente criava negócios como arte.
Foi aí que construímos a infraestrutura para fabricar várias das coisas que as pessoas já tinham confirmado que não iriam parar de comprar: tênis, computador, roupa, celular, energético, cigarro, óculos, maconha, software, espaços, e o que mais você imaginar. O que a gente entendia que diferenciava o nosso “negócio como arte” de um negócio corporativo qualquer, era que todas as empresas, e sua subsequente federação, foram conceitualizadas e metrificadas enquanto trabalhos de arte.
Os critérios, que nós, como comunidade, elegemos para fazer tal avaliação eram relacionados à beleza com que as empresas implementaram estatutos de governança cooperativa, como resolveram questões trabalhistas sistêmicas em sua hierarquia, o quanto financiavam as práticas artísticas de sua comunidade, eram financeiramente acessíveis, reduziam a necessidade de uso de combustível fóssil e por último, como implantavam elegâncias tecnológicas para lidar com todos esses desafios.
Mas voltando aqui especificamente à sua pergunta, acho que as consequências mais imprevistas de agora sermos um força econômica com meios de subsistência estáveis e práticas livres de um capital super guloso, foi que também, de uma certa maneira, interferimos na maneira como as pessoas se identificam com as coisas que elas desejam e compram. Os produtos que fazemos são aqueles que associamos à nossa cultura e por meio disso gravamos na sua subjetividade estética uma relação direta com o contexto e a história de sua fabricação justa, equitativa e comunitária. É justamente por isso, que agora acham este tipo de produto mais bonito ou mais gostoso, e pelo mesmo motivo que há muito mais tolerância quando estes não têm a funcionalidade máxima de seus concorrentes corporativos. Ao mesmo tempo, esse processo também produziu uma certa noção de que comprar produtos caros feitos por empresas-monopólios com práticas ambientais e trabalhistas antiéticas é algo meio fora de moda e vulgar. A sensação é de que nos dias de hoje a garotada só quer o tênis dos artistas/trabalhadores que tomaram os meios de produção e com isso estão gerando uma economia cooperativa, reduzem a emissão de CO2 da sua indústria e estão des-precarizando a classe artística/trabalhadora. Então, meio que sim, talvez essas noções de “legal/cool” e “justo” se misturaram nesse processo.
* Essa entrevista foi levemente editada em busca de maior claridade.