Parte II: Movimentos laterais — estratégias rastejantes
RR e W.E: Agora, gostaríamos de analisar como algumas questões que estamos discutindo se entrelaçam com a economia. Nos tempos atuais, o sistema de economia de atenção que gira em torno de Big Data vem se tornando cada vez mais desestabilizador. Historicamente, sob o capitalismo de livre mercado, o que tínhamos era uma economia que tinha como base um sistema de preços, que pode ser descrito, em poucas palavras, como um sistema em que se atribui valor à oferta e à demanda. Levando em conta o momento em que vivemos, em que, ao mesmo tempo em que novas formas de subjetividade proliferam, a atenção se tornou monetizada, gostaríamos que você nos explicasse como você vê essa passagem de uma economia baseada em um sistema de preços para uma economia da atenção.
MW: A habilidade de quantificar e monetizar a atenção é provavelmente a peça-chave desse processo, que parte do pressuposto de que a atenção é escassa. Você pode pensar nisso em termos econômicos: tomar a informação como ponto de partida se revelou problemático. A informação, quando você dispõe das técnicas para gerá-la, se comporta de maneira bastante estranha em termos de economia de mercado. A informação não é escassa. Mas a atenção é. Portanto, é nela que se deve manter o foco, quando se tenta criar uma espécie de simulação de um mercado capitalista. Do ponto de vista dessa lógica econômica, todas as formas de atenção são iguais. O que quer que você faça, se você for capaz de prender a atenção de alguém em alguma coisa e reter essa atenção, é considerado bom. Não se leva em conta se essa forma de atenção é ou não boa em qualquer outro sentido. Estou pensando no trabalho de Yves Citton, que me parece realmente útil. Yves ressalta que existem diferentes tipos de atenção. Idealmente, se deve manter um equilíbrio entre eles, para não corrermos o risco de retornar aos modos de atenção fascistas. Esse não é o termo que ele usa, mas [se trata de modos de atenção] em que a capacidade de traçar um limite parece ser o mais importante. A atenção fascista se organiza [em torno da ideia de que] existe alguém invadindo nosso espaço. Não importa quem sejam esses supostos invasores nesse caso: se se trata literalmente de estrangeiros, de aberrações de gênero ou de quem quer que seja. Os limites precisam ser colocados à força. É uma espécie de estado de alerta que procura constantemente localizar [esses limites e invasões].
Outro tipo de [atenção] é a atenção ao entorno. A atenção ao entorno, que muitas vezes é subestimada, permite que eu me desembarace de minhas noções de limites. Eu preciso me sentir segura para fazer isso, para simplesmente deixar de lado a ideia de que preciso ter limites. A partir daí emerge uma maneira completamente diferente de se fazer presente, em que eu não tenha mais certeza de quem sou eu ou de quem é o outro. Eu simplesmente me misturo com [o que me rodeia]. É impossível atingir esse estado se estivermos continuamente em um estado de atenção que gira em torno de pânico e de limites. Ou não vamos conseguir atingir um estado como esse, ou pode ser que optemos por padrões familiares que nos fazem sentir em casa quando estamos ansiosos diante da instabilidade de tudo. Nos prendemos a certas coisas porque elas nos são familiares, em todos os sentidos que podem ter [palavras como] “família” e “familiar”. Nos afastamos daquilo que é estranho. Acontece que, quando não estamos em uma situação precária, ir de encontro a coisas que nos são estranhas é bonito — é aí que acontecem os processos de aprendizagem. Durante os processos de aprendizagem, nos aproximamos de pontos de vista a respeito dos quais não fazemos ideia, e que podem nos transformar em outras pessoas.
A mercantilização da atenção, que achata todas as formas de atenção e as torna iguais, leva em conta apenas o valor quantificável que os estados de atenção são capazes de gerar. Tudo isso acaba por nos arrastar para longe da possibilidade de perceber nosso ambiente de forma coletiva, que nos tornaria capazes de agir sobre esse ambiente, a partir de dentro. Me espanta o otimismo de Walter Benjamin, que acreditava que a reprodutibilidade técnica nos ofereceria ferramentas que nos ajudariam a perceber nosso mundo e agir de maneira coletiva sobre ele. Não foi bem assim que a coisa se desenrolou [risos]. Estamos cada vez mais longe [dessa ação coletiva]. Não conseguimos perceber os ambientes em que estamos porque não abrimos mão dos nossos limites. Não somos capazes de apreender a estranheza porque estamos assustados demais. É como se a humanidade de modo geral tivesse perdido a cabeça e perdido os sentidos. Não sei se existe uma expressão equivalente em português, mas perder os sentidos é algo bem ruim [risos]. Não é como se em algum outro momento tivéssemos percebido o mundo como realmente é. Os lacanianos têm razão ao dizer que a relação que estabelecemos com o mundo é sempre um tanto delirante e imaginária; acontece que podemos [estabelecer essa relação] de modo mais ou menos bem sucedido. Me parece que em algum momento perdemos a mão nesse processo.
RR e W.E: Com o desenvolvimento da Big Data, estamos vendo emergirem muitas discussões em torno da questão do cálculo socialista: a ideia é que seria possível planejar a economia, mantendo um planejamento econômico centralizado através da Big Data. Qual é o seu olhar sobre a Big Data, e de que maneira você enxerga o debate econômico socialista que ressurge neste momento? Talvez você pudesse falar também sobre outros conceitos relacionados, tais como web3, economia descentralizada, blockchain e criptomoeda, e nos dizer se você acredita que qualquer um deles nos permite vislumbrar uma perspectiva progressiva à esquerda.
MW: É difícil imaginar que estas coisas possam vir a ser [ferramentas progressivas] sem a mobilização de forças sociais capazes de criar demandas nessa direção. Nos falta a capacidade de mobilizar potências de classe que poderiam fazer com que as coisas acontecessem, mas existe uma tendência a se acreditar que a tecnologia poderia mover as coisas por si mesma: só o que precisaríamos fazer é concebê-la corretamente. Isso não vai funcionar bem. Além disso, existe outra questão: que forças sociais você é capaz de alinhar? Seria preciso incluir os camponeses e os operários na maior parte do mundo, e também a classe que eu chamo de classe hacker, que inclui pessoas que projetam coisas [lidando com informação]. Será que essas pessoas dialogam com os movimentos sociais? Normalmente, não. Como se daria exatamente a criação e de um design democrático e a implementação de formas de computação? Prefiro não tomar posições muito definidas a respeito de tecnologias específicas. Vou ser apenas uma observadora neutra do blockchain. É uma invenção brilhante, ainda há muitas possibilidades em aberto quanto àquilo que se pode fazer com ela. Apesar disso, no momento, tudo parece estar se encaminhando em direção à especulação [financeira]. Então, sim, ótimo, que bom que esses caras apareceram, mas isso não quer dizer que [essa tecnologia] representa necessariamente [algo libertador]. Talvez possa significar outras coisas. Faz falta a capacidade de contestar aquilo que a classe dominante está fazendo. Ela cria novas tecnologias de acordo com suas próprias necessidades e organiza praticamente qualquer coisa em torno de relações superextrativistas. Há um achatamento da questão do valor: só é válido aquilo de que se pode extrair algo. É mais ou menos aí que nós estamos.
RR e W.E: Quais são as assimetrias de informação, infraestrutura e mão de obra mais proeminentes hoje em dia, do seu ponto de vista? Como essas formas de dominação podem ser transformadas em ferramentas de subversão? Estamos pensando aqui, por exemplo, em táticas como as greves de motoristas de aplicativos que vimos no Brasil. Existem também projetos de blockchain que atuam como cooperativas e que talvez possam ser ferramentas para subverter essas assimetrias recorrentes.
MW: Meu colega na New School [New York], Trebor Schultz, está tentando pensar sobre o que ele chama de cooperativismo de plataformas e tentando entrar em contato com o movimento de cooperativas no mundo todo. Em alguns lugares, as cooperativas podem ser instituições bastante massivas. Ainda assim, geralmente elas não se tornam dominantes. No mundo capitalista, as estruturas jurídicas e financeiras parecem não favorecer as formas de propriedade que se organizam sob cooperativas, o que não é nada surpreendente, e por isso é difícil fazer com que as cooperativas se tornem empreendimentos em larga escala. Mas, em alguns nichos particulares, elas parecem ter sempre funcionado bem e podem voltar a funcionar, incorporando novos tipos de infraestrutura. Me parece que existe uma vitalidade em torno das cooperativas que foram bem-sucedidas em diferentes partes do mundo. Elas se enxergam como parte de um movimento global que investiga de que maneira elas se veem impelidas a usar novas ferramentas, e como podem crescer e se desenvolver a partir daí.
Vamos tentar de tudo. Todas as estratégias do século XX fracassaram. Não vale a pena investir em argumentos facciosos sobre quem é comunista para valer ou não. Simplesmente não importa, todo mundo perdeu. O que a gente consegue resgatar das ruínas? As cooperativas ainda existem, então vamos continuar fazendo isso. A greve ainda funciona, então pode continuar sendo usada como ferramenta. Como você convence os trabalhadores digitais, os trabalhadores intelectuais e a classe hacker como um todo de que [seus interesses] têm paralelos com os da classe trabalhadora? Se trata de algo um pouco diferente em alguns aspectos, mas a capacidade de pensar para além da própria profissão, a partir de interesses de classe, assim como a habilidade de se retirar do jogo, podem ser realmente importantes. [Deveríamos] deixar de lado a ideia de que fazer um trabalho intelectual ou criativo é de alguma forma diferente de fazer um trabalho técnico ou científico. Não, em todos esses casos o valor [do trabalho] é extraído praticamente da mesma maneira, usando praticamente as mesmas plataformas. Quais são então nossos interesses de classe, e com quem queremos nos alinhar? Todos os nossos trabalhos estão se tornando mais proletários, sujeitos às formas mais ridículas de vigilância e controle. As universidades estão sendo esvaziadas e se transformando em meras plataformas de software. Portanto, [fazer um trabalho intelectual ou criativo] não é tão divertido quanto costumava ser. Então, sim: pensar como uma classe, pensar em alianças de classes.
Como você intervém no desenvolvimento e na implementação de tecnologias para ampliar o alcance dos movimentos sociais? Uma aliança ampla antifascista é claramente uma coisa de que vamos precisar, um pouco como nos anos 1930, mas com algumas peculiaridades novas. E se a gente pensasse que o fascismo talvez seja o dispositivo político padrão, e que algumas vezes aparecem exceções a ele? Talvez pensar nesses termos faça ainda mais sentido fora da Europa: talvez os movimentos sociais sejam capazes de empurrar os sistemas fascistas para fora por alguns períodos de tempo, mas tudo indica que isso é algo muito difícil de sustentar. Acaba sendo algo frágil, precisamente porque [essas alternativas ao fascismo] costumam ser construídas tendo como base a exploração da economia mercantilizada. Sinto muito. Não estou otimista, para ser honesta, mas essas são as pautas que me parecem fundamentais ou ao menos parte delas.
RR e W.E: Agora vamos pensar no papel da arte e da cultura em relação a tudo isso. Você geralmente coloca em primeiro plano movimentos artísticos de vanguarda, discutindo como esses movimentos têm pensado sobretudo sobre e através da mídia. É como se esses movimentos de alguma forma espelhassem a economia política, os sistemas mídiaticos e os recursos materiais de que esses sistemas precisam fazer uso para funcionar, trazendo à tona as técnicas invisíveis que costumam mediar nossa experiência social. Hoje em dia, quais são os movimentos culturais e/ou artísticos mais interessantes que estão incorporando essa estratégia?
MW: “Vanguarda” talvez seja um termo problemático para o século XXI, já que se trata de um termo militar que significa avanço da unidade principal do exército. Tornou-se uma forma de tentar escapar de qualquer organização social, política ou cultural dominante, antecipando-se a algo que, depois, poderia ser recuperado. Tudo isso agora está incorporado [ao sistema]. Me parece que a classe vetorialista adora a vanguarda, já que ela de alguma forma atua como uma espécie de teste de mercado espontâneo, apontando para coisas que depois podem vir a ser assimiladas. Talvez a gente precise de um movimento lateral que nos permita pensar como a gente faz para se arrastar para fora, pelas bordas. As vanguardas empregavam estratégias para chamar a atenção que eram sobretudo estratégias midiáticas. Todas as vanguardas são, na verdade, vanguardas de mídia, não de arte. A partir do momento em que a gente começa a se questionar se a visibilidade é afinal de contas algo tão interessante assim, emerge uma estratégia diferente.
As coisas mais interessantes que têm acontecido agora tendem a ser um tanto discretas, pouca gente sabe sobre elas. Foi um desafio escrever um livro sobre a cultura trans das raves na cidade de Nova York. Eu não quero chamar a atenção para essa cena. Por isso optei por não citar nomes de pessoas ou de espaços. Cito nomes de DJs, mas não menciono nomes de nenhuma das festas nem de seus organizadores. Não cito o nome de nenhum dos espaços, embora alguns deles sejam bem conhecidos. [É como se eu dissesse:] Aqui está [essa cena], mas não quero dar a vocês um acesso rápido demais a ela. Há uma famosa festa em Nova York chamada Unter que segue acontecendo, é uma das minhas favoritas, mas fizeram um tik tok da pista de dança que já tem mais de 300 mil views, sabe, e eu só consigo pensar, “que ótimo…”.
Eu adoro que as pessoas possam ter possibilidades para encontrar coisas como essas, mas não se costumava dar esse grau de atenção a raves de temática queer antes. Existe espaço para explorar práticas coletivas de improvisação a partir de diferentes técnicas corporais, formas de relação, formas de sensibilidade, mas talvez, mais do que estar na vanguarda, estejamos buscando nos arrastar para as laterais e encontrar nossos pequenos cantos separados em algum lugar. Foi isso que fez com que eu me interessasse pela cena das raves. Não é como se se tratasse de uma coisa nova, [a cena] já tem trinta anos de idade. Eu estava fazendo isso nos anos 1990, a única diferença é que de lá para cá a tecnologia se tornou um tanto melhor. Também estou interessada nas vanguardas de gênero. Há técnicas baratas e fáceis para modificar o corpo que reverberam na [percepção] de gênero, mas existe algo que me parece como uma enorme falha geológica: todos estão modificando seus corpos o tempo todo, mas não é como se não se pudesse tocar no gênero. A não ser na direção de mais do mesmo.
Há todo um pânico em torno do fato de homens trans terem acesso à testosterona. Mas ninguém parece estar em pânico a respeito do fato dos homens cis terem acesso à testosterona, o que acontece em qualquer academia em que você entre, basicamente [risos]. Eles ficam lá usando aquelas máquinas, eles tomam cinco bombas e eu digo “bom, você não está fazendo isso [transformando o teu corpo] apenas com a sua ação mecânica, querido” [risos], mas ninguém parece se assustar por conta disso, não? Eu preciso de uma carta de um psiquiatra se quiser aumentar os seios, mas as mulheres cis podem simplesmente ir lá, pedir e conseguir. Este é o território de Paul B. Preciado: o que significa pensar em movimentos sociais, estéticos e culturais em que o gênero está em jogo e, mais do que isso, a diferença sexual tal como se inscreve no corpo também? Vamos falar do modo como essas práticas são extremamente hackeáveis e divertidas, estão cada vez mais difundidas e indo além do escopo da medicalização.
RR e W.E: Parece haver algo importante quando você fala da necessidade de encontrar práticas coletivas e trocas que se deem de modo mais móvel, se desdobrando em experiências menos frontais e mais laterais, ainda que não exatamente invisíveis.
MW: Sim. Édouard Glissant trabalhou sobre o conceito de opacidade no mundo francófono e anglófono, relacionando-o especificamente à experiência da negritude, e esse talvez seja um conceito relacionado [às coisas de que estamos falando]. Dá para dizer que a visibilidade costuma ser, em geral, algo ruim para a maioria das pessoas trans. Ela pode ser ótima para pessoas trans relativamente privilegiadas de classe média, mas pode ser muito ruim para aqueles que já são marginalizados, porque então as pessoas sabem quem procurar e quem atacar, sabe? A gente deveria ter muito mais cuidado com a posição que ocupa. Precisamos estar visíveis o suficiente para que as pessoas saibam que a gente existe, mas não tão visíveis a ponto de nos tornar algo atraente para ser comercializado ou para que nos transformem em ícone que representam tudo aquilo que existe de errado com a civilização ou coisa parecida. Quanto menos os fascistas souberem sobre o que realmente fazemos, melhor.
RR e W.E: Na primeira parte da entrevista, você estava falando sobre as suas experiências de dissociação e de como se tornou difícil escrever durante o processo de transição. É interessante pensar que esses momentos em que precisamos pausar, em que não conseguimos ser tão produtivos, podem ser entendidos de forma coletiva. O quão significativos podem ser esses momentos de hiato e o que fazer a partir deles? Como essa experiência pode ser compartilhada com os outros?
MW: Eu acho que essa é uma experiência comum. Tanto no caso da transição social quanto da transição médica, no caso daquele/a/s que decidem tomar hormônios ou coisas assim, você acaba tendo que lidar com dois tipos diferentes de pressão: para encarnar em seu corpo e para se tornar um sujeito. Você está se apresentando como outra pessoa no mundo, e esse processo vai levar algum tempo, particularmente no caso das pessoas que passam por transições hormonais — e isso provavelmente é algo compartilhado pelas mulheres cis que passam pela menopausa. Todos nós passamos pela puberdade, e vocês talvez se lembrem, provavelmente muita coisa aconteceu durante uns poucos anos. Qualquer mudança substancial na forma como os hormônios do seu corpo estão regulados vai ser perturbadora. Durante cerca de três anos eu não conseguia escrever, escrevi artigos, mas não conseguia fazer um projeto de livro, em parte porque eu não sentia essa necessidade. Esse costumava ser o meu tipo de espaço. Me dei conta de que [antes da transição] eu estava escrevendo porque estava disfórica. Eu sou uma daquelas pessoas que precisa estar sempre trabalhando. Criei toda uma rede da qual eu pudesse fazer parte. Entrei em contato com todos os artistas trans interessantes que pude encontrar em Nova York, levei-a/o/e/s para almoçar e conversei com ele/a/u/s sobre seu trabalho e outras coisas. Não pude manter o mesmo nível de conexão por muito tempo, e depois, é claro, houve a covid.
Sinto que meus interesses também mudaram de direção durante esse processo. Voltei às raves por conta da pessoa que escolhi como minha mãe trans, ela era uma raver, sabe? Foi assim que acabei voltando a esses espaços. De alguma maneira a própria transição pode se tornar uma espécie de prática estética. Com isso não quero sugerir que essa seja uma linguagem para todos, mas você não precisa pensar [na transição] em termos médicos ou psiquiátricos, isso é muito importante. Existem muitas linguagens que você pode usar para pensar essas práticas, e nem todas elas precisam ser estéticas. Mas existe uma estética envolvida no processo de se tornar outra pessoa, uma outra pessoa que escreve um tipo diferente de livro. Meus últimos três [livros] são substancialmente diferentes dos outros, e, para mim, ao menos, de maneiras interessantes. Eu obviamente perdi alguns leitores, alguns deles desapareceram, mas também tenho leitores novos e isso também é interessante. Eu estava participando de uma leitura algumas noites atrás e alguém que tinha arrancado a capa de Reverse Cowgirl [“Vaqueira invertida”] e queimado as bordas me pediu para assinar essa página chamuscada do meu livro. E eu perguntei: “você vai me enfeitiçar com isso? Ou é para um altar?”. Foi um tanto estranho, mas tudo bem [risos]. Foi divertido, é um tipo de leitor/a diferente dos marxistas barbudos que queriam ter discussões sobre Althusser. Não que houvesse algo de errado com isso, mas estou me divertindo mais agora.
RR e W.E: O que você estava dizendo faz pensar sobre a noção de tempo. Existem momentos em que já não somos capazes de ler as coisas do mesmo modo, seguir agindo da mesma forma. Algo na relação com o tempo se torna diferente, e precisamos adentrar um novo tempo, aceitá-lo. Isso é muito desafiador. É como se estivéssemos lidando com muitas temporalidades simultâneas e precisássemos estar atentos a todas elas.
MW: Sim. Existe uma temporalidade trans: existe o tempo que se passou desde que você nasceu, e, depois, também o tempo que se passou desde que você fez a transição. Eu fiz a minha transição bastante tarde, então a maior parte das pessoas que conheço, e que transicionaram ao mesmo tempo que eu, é de millenials. Então a linguagem que eu uso [para falar da transição] é a mesma de pessoas de uns 30 e poucos anos, e que acham que transicionaram tarde, sabe? E então eu digo: “querides, por favor!” [risos]. [A temporalidade trans] te coloca em sintonia com uma geração diferente, o que é uma experiência superinteressante de se ter. Algumas pessoas pensam que a transição tem um fim, e que elas se tornam outras pessoas. Outras pessoas acham que [a transição] nunca termina. Existem maneiras diferentes de se pensar sobre isso. Por vezes esse tempo corre de forma muito gradual, muito difícil de perceber. [Em outros momentos] pode haver mudanças repentinas de perspectiva. É toda uma fenomenologia de experiências que são em parte compartilhadas por algumas outras comunidades. Descobri que podia ser superinteressante conversar com mulheres que passavam pela menopausa, porque elas também têm mudanças hormonais repentinas e às vezes tomam o mesmo remédio que eu para isso. Existem experiências específicas que o nosso corpo atravessa, e deveríamos ter permissão para falar sobre isso. Existe todo um capítulo do feminismo que se baseia na capacidade de dar à luz, e isso é importante. Respeito isso, mas há outras experiências corporais sobre as quais poderíamos falar, e que trazem à tona conhecimentos que dizem respeito a vivências diferentes.
RR e W.E: Você também menciona, em Capital is Dead [“Capital está morto”], que a classe vetorialista é avessa à inovação, por ser avessa ao risco. Apesar disso, a inovação segue sendo estimulada, não apenas como prática, mas também como discurso. O que acontece com o risco? Ele é transferido para outro grupo? Ele é redirecionado para a classe hacker? Como esse risco se desenvolve financeira e socialmente ao longo do tempo?
MW: As pessoas que estão correndo mais risco são aquelas que vivem em comunidades agrárias em partes cronicamente subdesenvolvidas do mundo, e se trata sobretudo de um risco climático. Será que vamos deixar populações inteiras tentarem se salvar sozinhas? Isso já está acontecendo. Algumas partes do mundo já estão se tornando inabitáveis neste momento. E são as pessoas empobrecidas que estão sendo atingidas de modo sistemático. Há partes da América Central, por exemplo, em que os níveis de umidade e de temperatura já estão à beira do humanamente suportável, e à medida em que [esses índices] são empurrados para o ponto de ruptura, surge um grande fluxo de migrantes rumo aos Estados Unidos, por exemplo. Esse fenômeno é em parte impulsionado pelo clima. Esse é o principal risco [que estamos enfrentando] e não há nenhuma maneira de contorná-lo, já está em curso.
Em geral, as classes dominantes são avessas ao risco. O risco deve ser evitado e, sempre que possível, transferido para o Estado. Essa é a razão pela qual os Estados costumavam ser, e ainda são, em grande parte, responsáveis pela ciência básica, já que [a ciência] é um empreendimento muito arriscado. Você não sabe se algum [dos experimentos científicos] vai render algo que seja comercialmente viável. A classe que eu chamo de classe vetorialista não quer correr muitos riscos. Ela quer ter a possibilidade de tomar parte rapidamente em qualquer coisa que seja patenteável e que potencialmente possa gerar valor, mas para que isso aconteça o Estado precisa assumir muitos riscos. A classe hacker precisa também assumir muitos riscos, criando startups que muitas vezes vão acabar fracassando. Se você tiver algo de valor, provavelmente terá que vendê-lo a alguma empresa maior em algum momento. De alguma forma, o que a cultura das startups faz é terceirizar os riscos. Ela permite que as pessoas aguentem muita coisa por conta própria e, logo em seguida, o que o capital de risco faz é apenas semear dezenas de pequenas coisas com base em uma simples teoria moderna de portfólio [em que se diversifica os investimentos para maximizar o retorno]. Você faz uma série de apostas diferentes e, dependendo das oscilações e reviravoltas, perdas e ganhos, vai acabar valendo a pena no final. É mais ou menos assim que funciona, é assim que os derivativos funcionam. A ideia é basicamente fazer apostas paralelas em todos os resultados futuros possíveis que você é capaz de projetar.
Me parece que o risco costuma ser empurrado de volta para as comunidades urbanas. São sempre as populações mais marginais que acabam arcando com as consequências dos riscos da especulação imobiliária. É algo assim: “nos demos conta de que o lugar onde você mora pode ser bastante atraente para pessoas com renda mais alta, então decidimos te expulsar. Boa sorte enquanto você vaga pela cidade, procurando outro lar”.
“Inovação” agora parece significar, antes de mais nada, redução de custos e desregulamentação. Todas as coisas que agora são promovidas como novas são variações de coisas que já existiam. O desenvolvimento tecnológico chave parece ter acontecido durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, num momento em que a pesquisa técnica e científica era socializada, e nós apenas nos alimentamos [dessas pesquisas] até hoje. [A nossa] parece uma época sem muita inovação, ou que é capaz de desenvolver variações retrô verdadeiramente insanas. Um exemplo: continuamos dirigindo carros, porque ninguém teve uma ideia melhor que pudesse ser privatizada, mas estamos tentando fazer com que [os carros] possam ser dirigidos de modo automático, o que acaba sendo complicadíssimo, ao invés de projetarmos um sistema de transporte que funcione, e que logicamente teria que ser socializado. Uma enorme quantidade de dinheiro foi usada para criar esse modelo de veículo privado, que acabou por destruir cidades de uma maneira completamente insustentável. Uma das maiores forças de trabalho nos Estados Unidos é a dos motoristas de caminhão. É como se a classe dominante pensasse: “olha só, vejam todos esses trabalhadores: vamos elevar o valor desses trabalhadores e os caminhões vão passar a se dirigir sozinhos”. Você consegue imaginar semirreboques acionados por máquinas? [risos] Por favor, já vimos o suficiente disso.
RR e W.E: A última pergunta que temos é bastante aberta. Enquanto artistas, trabalhadores, teóricos e hackers, como podemos estranhar ou escuirecer nossa economia?
MW: Ah, sim, boa essa maneira de formular a questão. De algum modo a gente precisa reconhecer que está trabalhando em uma totalidade econômica na qual a gente não tem muita autonomia, e, ao mesmo tempo, não olhar para isso de um modo moralista demais, já que todos nós acabamos tendo que vender nossa mão de obra em algum momento. Sejamos honestos, sem juízo de valor sobre isso. Mas vamos combinar uma coisa: não vamos trabalhar para fascistas ou para militares, certo? Acho que é preciso pensar no que vêm a ser práticas coletivas, e como esse tipo de prática pode se ampliar e se sustentar através do tempo. Há histórias de práticas colaborativas e coletivas bem interessantes, mas a formação que recebemos tende a não se debruçar muito sobre elas. Somos apresentados a indivíduos e movimentos, mas esses movimentos são apenas nomes dados a estilos estéticos. Mas há também o Fluxus, este organismo coletivo que durou décadas e existe até hoje, ainda existe um espaço deles em Nova York. [O Fluxus] pensou de maneiras interessantes sobre a intercomunicação entre artistas e sobre a relação entre mídias, e depois em parte se retirou de cena. É claro que tudo [o que o Fluxus produziu] se tornou valioso no final, mas essa é a grande ironia: se você for mesmo bem-sucedido [nos seus experimentos], mais para frente isso vai gerar valor de troca absurdo, no fim das contas as pessoas vão querer colecionar, organizar curadorias e escrever livros a respeito. É uma espécie de oferta diabólica.
Vamos criar nossos próprios espaços para nossas práticas. Melhor não falar para muita gente sobre o que estamos fazendo, ainda que vez ou outra criar algo como um manifesto ou um bom meme pode não ser uma tática ruim: é uma maneira de soltar umas mensagenzinhas por aí. Como você fez para encontrar o caminho para os lugares onde você precisava estar? Basicamente, você encontrou um meme em algum lugar. E isso mesmo antes, em regimes de mídia mais antigos. Você via uma foto em uma revista e pensava: “Quem são essas pessoas? Onde as encontro? Vou procurar”. Enviar mensagens um pouco encriptadas não é uma má jogada, mas, ainda assim, provavelmente é uma boa ideia a gente se manter mais longe dos holofotes do que a gente estava acostumada.
Andei pensando em algo que estou chamando de femunismo, que não é nem feminista nem comunista. É algo que não se opõe a qualquer uma dessas duas coisas, mas também não corresponde a nenhuma delas. Como você construiria uma base para algo assim, que fosse centrado em pessoas trans e não brancas? Não sei se dá para fazer construções [de palavras] como essas em português, como se faz em espanhol. Gosto de criar substantivos abstratos com raízes latinas porque eles funcionam em quase todas as línguas europeias. O Manifesto Hacker [“Hacker Manifesto”] é escrito nesta língua imaginária criada a partir de porções iguais de inglês de negócios, latim de igreja e marxismo, porque essas são todas línguas paneuropeias que você pode falar. Portanto, como criar um ponto de encontro entre essas perspectivas? E ainda: como pensar em uma estética femme, mais do que numa estética feminista? E isso não é algo utópico, as femmes têm rivalidades, podem dar rasteiras… Não deixam de existir afetos difíceis, mas há mais atenção às superfícies, às conexões e espaços que efetivamente acontecem. Há um certo tipo de agressão que deixa de predominar. Como a gente pode criar interações que girem mais em torno de valores femme? Esse me parece um projeto interessante.
RR e W.E: E quanto à parte comunista do femunismo?
MW: A ideia é: que parte de nossas interações podemos colocar para fora da propriedade privada? É algo que só pode acontecer em parte, mas provavelmente temos que fazer as pazes com essa limitação. Você pode sustentar o comunismo para uma centena de pessoas por cerca de oito horas, e isso em uma boa rave; mas não dá para ir muito além, e ainda assim vai haver problemas. Ainda vai haver assédio sexual, alguém vai ter overdose, ainda vai haver coisas ruins acontecendo, não é uma utopia. Mas talvez seja melhor que essas coisas ruins aconteçam nesse lugar, do que em alguns outros. Se for um espaço bem administrado, ninguém vai chamar a polícia, [a própria comunidade] lida com os problemas. Ainda vão existir problemas, a diferença é que ali podem existir outras maneiras de lidar com eles. Talvez a gente pudesse desenvolver uma linguagem diferente para falar disso tudo. Isso nos leva de volta a uma pergunta anterior: como seria uma linguagem que nos ajudasse a pensar sobre o que queremos, mas que dissesse respeito menos aos desejos e mais aos impulsos? Talvez haja uma espécie de aura sagrada ligada à ideia de desejo, mas talvez não haja nada de errado com os impulsos. E talvez valha a pena prestar atenção no modo como administramos colaborativamente a tensão entre as unidades das células de mamíferos: pode ser que as práticas coletivas operem de forma parecida.